quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Um texto inteligente que ajuda a actualizar o nosso português.

Um cê a mais

Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retiraautomaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que,aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que,ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa. Custa-me despedir-medaquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio.Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês meacompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, porvezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueçasde mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz,sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nemparecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um diapara o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nosespetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, aosegundo ato, eu ato os meus sapatos. Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavrasarrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenese entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errartenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há umdivórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não seentendem. Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram aser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade,não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tãoimportantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, massem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimoque já não tenham. As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vouter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudovai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção,nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdadeseja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê aatrapalhar.

-Manuel Halpern

*José Régio-Soneto quase inédito e muito actual...*

*Soneto quase inédito*

*Surge Janeiro frio e pardacento,
Descem da serra os lobos ao povoado;
Assentam-se os fantoches em São Bento
E o Decreto da fome é publicado.*
*Edita-se a novela do Orçamento;
Cresce a miséria ao povo amordaçado;
Mas os biltres do novo parlamento
Usufruem seis contos de ordenado.
E enquanto à fome o povo se estiola,
Certo santo pupilo de Loyola,
Mistura de judeu e de vilão,*
*Também faz o pequeno "sacrifício"
De trinta contos - só! - por seu ofício
Receber, a bem dele... e da nação.

** ** * *JOSÉ RÉGIO* Soneto escrito em 1969.
*Tão actual em 1969, como hoje...*
*E depois ainda dizem que a tradição já não é o que era!!!*

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

É bom para a gripe

( Os homens quando estão com gripe, é uma chatice para os aturar!:)))
Pachos na testa
Terço na mão
Uma botija
Chá de limão
Zaragotoas
Vinho com mel
3 aspirinas
Creme na pele
Dói-me a garganta
Chamo a mulher
Ai Lurdes, Lurdes
Que vou morrer
Mede-me a febre
Olha-me a goela
Cala os miúdos
Fecha a janela
Não quero canja
Nem a salada
Ai Lurdes, Lurdes
Não vales nada
Se tu sonhasses
Como me sinto
Já vejo a morte
Nunca te minto
Já vejo o inferno
Chamas diabos
Anjos estranhos
Cornos e rabos
Vejo os demónios
Nas suas danças
Tigres sem litras
Bodes de tranças
Choros de coruja
Risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes
Que foi aquilo
Não é chuva
No meu postigo
Ai Lurdes, Lurdes
Fica comigo
Não é o vento
A cirandar
Nem são as vozes
Que vêm do mar
Não é o pingo
De uma torneira
Põe-me a santinha
À cabeceira
Compõe-me a colcha
Fala ao prior
Pousa o Jesus
No cobertor
Chama o doutor
Passa a chamada
Ai Lurdes, Lurdes
Nem dás por nada
Faz-me tisanas
E pão de ló
Não te levantes
Que fico só
Aqui sozinho
A apodrecer
Ai Lurdes, Lurdes
Que vou morrer
-A. Lobo Antunes-