quinta-feira, 28 de julho de 2011

. Prova de Vida.

Prova de vida****
DN 2011-07-13 VASCO GRAÇA MOURA

"Terminal", dizia-me alguém há cerca de dois meses, "- Ela está em estado
terminal". Vi-a chegar com o marido a esse almoço de amigos, em que
participou discreta e aparentemente bem disposta, na sóbria gravidade da sua
postura algo emaciada, conversando sem aludir à doença, nem à inquietação ou
ao sofrimento por que passava. Era assim que aliava estoicismo e bom gosto.
Tinha uma maneira directa e inteligente de abordar as questões, encarando as
coisas de frente, dizendo o que pensava, apresentando os seus argumentos com
total clareza. Era uma mulher sem ambiguidades nem falhas de coragem e todos
os que a leram regularmente nesta página podem testemunhá-lo.
A sua vida familiar, a sua carreira profissional, o seu percurso político,
as qualidades de que deu provas, a sua energia, a sua capacidade de análise
e de decisão, os êxitos do seu trajecto, as suas posições no tocante à
sociedade e ao mundo, tudo isso já veio referido em comentários dos mais
diversos quadrantes.
A sua autobiografia sumária, num texto concluído e aqui publicado, no DN, no
próprio dia da sua morte, é um dos documentos humanos mais belos e pungentes
que me tem sido dado ler nos últimos tempos. Pensando bem, creio mesmo nunca
ter lido nada assim: alguém escreve na primeira pessoa do singular na
iminência da sua própria morte, quase em tempo real, com uma autenticidade,
uma serenidade e uma coragem excepcionais e desarmantes!
É com alguma melancolia que me ponho a pensar nessa relação, afinal
transparente, entre saber viver e saber morrer. Como quase toda a gente da
minha geração em Portugal, eu tive uma educação católica, embora não seja
crente desde a adolescência. Não sinto necessidades de nenhuma espécie de
incursão na esfera do transcendente, limitando-me a integrar-me nos chamados
valores da civilização cristã e a fruir o que deles possa ecoar nas grandes
criações do espírito humano, em especial na literatura e nas artes.
Apesar desse laicismo, impressionou-me profundamente a maneira como ela
transfigurou a sua educação católica numa experiência pessoal e muito
intensa de intimidade com o sagrado e esta em código de conduta moral e
norma de actuação prática na vida de todos os dias. Fiquei com a ideia de
que a crença cristã foi por ela interiorizada de tal maneira que tornou cada
acto da sua vida numa profissão de fé e num exercício de alegria íntima.
Isto é muito raro num país em que a tradição religiosa dominante, a
católica, se fica as mais das vezes por rituais esvaziados de sentido e pelo
mero papaguear do que se aprendeu na catequese.
Ficou-me também a impressão de que a palavra de Deus em que acreditava - e
por isso queria, sabia e conseguia vivê-la como alimento espiritual
quotidiano - lhe era, ao mesmo tempo, condição e explicitação constantes de
uma plena realização pessoal, na própria ascese que procurava para o seu
itinerário, na compreensão tolerante do próximo, nos valores da
solidariedade e da cidadania, na firmeza com que defendia os princípios que
para ela valiam na vida pessoal e na sociedade.
Fazia isso com a enorme naturalidade de ser uma mulher bem do seu tempo,
culta e desempoeirada, aberta à modernidade e, sempre que necessário,
questionadora da modernidade, de convicções solidamente assentes e
pensamento estruturado, de desassombro nas atitudes e coragem sem limites na
assunção de responsabilidades, e também com um trajecto de experiências
acumuladas de que soube utilizar as mais duras e amargas para a inimitável
têmpera da sua personalidade.
Tenho alguma dificuldade em exprimir estas coisas, mas creio que ela soube
forjar uma matriz de confiança nessa via anímica e espiritual que, para os
eleitos, os happy few, é em si mesma um caminho de esperança e uma proposta
de comunhão e partilha, em que o eterno e o temporal se articulam de modo
indissociável, seja qual for o lugar de exílio em que o ser humano se sinta
a existir.
Por isso, ao dizer "o Senhor é meu pastor, nada me faltará", nas suas
palavras finais, ela citou textualmente o mesmo salmo 23 de que já tinha
deixado entrever um dos versículos quando disse que, "graças a Deus", nunca
tivera medo: "Mesmo que atravesse os vales sombrios, nenhum mal temerei,
porque estás comigo."
Esta densa memória que vamos guardar de Maria José Nogueira Pinto é a sua
prova de vida.****

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